O período de "ouro" da cultura islâmica
Olhando o mundo hoje, nos admiramos com tudo o que vemos e produzimos. Ficamos fascinados ao olhar para o céu e apontarmos para as estrelas, numa eterna brincadeira de ligue-os-pontos. Vemos a engenharia e a arquitetura brindando-nos com formas e construções magníficas. Vemos a moderna ciência vasculhar os meandros da matéria e combinando substâncias para produzir coisas novas. Os materiais são novos, mas as técnicas são antigas, muito antigas.
Antes de nossos pais, avós, bisavós e do seu antepassado mais antigo do qual você se lembra, a ciência islâmica já dominava o mundo, da Ásia Central à Europa ocidental. Aqui contaremos um pouco sobre como os desbravadores do pensamento científico moldaram nosso mundo e como sua influência não é apenas a pedra basilar de tudo o que sabemos hoje. É simplesmente MUITO MAIS!
Tudo começa com o declínio do Império Romano no século V. A Europa vira a sucursal do Inferno. Bárbaros atacam de todo o lado, as glórias de Roma e o estandarte SPQR (Senatvs Popvlvs Qve Romanvs – O Senado e Povo de Roma) já não são mais vistos. Vikings, bretões, saxões, visigodos, magiares, eslavos e vândalos (tribos germânicas que deram origem ao moderno termo “vândalo”, que na época se tratava de uma turba bárbara que destruía tudo o que encontrava pela frente) não sentem mais medo das legiões romanas. Em 476 E.C., o imperador Flávio Rômulo Augusto (Flavivs Romvlvs Avgvstvs) – ridicularizado pela alcunha de Rômulo Augústulo, significando que ele era “Pequeno Augusto” – teve a sua bunda romana chutada pelo rei Odoacro da tribo germânica dos Hérulos.
Odoacro nasceu às margens do rio Danúbio, que não era tão azul assim na época e ficou muito pior durante as guerras. O rei germânico mandou os estandartes de volta para Zenão I, imperador romano do oriente, cujo império viria a se tornar o Império Bizantino e lá começaria a desenvolver-se o que viria a se tornar a Igreja Católica, como força política e militar, mas isso ainda demoraria alguns séculos.
No século VII, um certo cameleiro, condutor de caravanas, teve um vislumbre do poder de Deus. Ou, pelo menos, foi isso que ele disse depois que o arcanjo Gabriel deu-lhe um “guenta” e ordenou que ele recitasse. Assim, Abu al-Qasim Muhammad ibn ‘Abd Allah ibn ‘Abd al-Muttalib ibn Hashim, mais conhecido como Muhammad ou Mohammed ou ainda Maomé (por razões de economia de tempo e espaço, não colocaremos as transliterações dos nomes e demais palavras em árabe usando seu próprio alfabeto, nos contentando apenas com os nomes, títulos e demais palavras usando o alfabeto latino mesmo), fundou uma das maiores religiões do mundo, ainda hoje em ascensão: O Islamismo.
De posse de uma das mais poderosas forças que se pode obter, a religião organizada, Maomé começou um movimento de expansão.
Brandindo o Al-Quram como a verdadeira e única Palavra de Deus, Maomé passou a fio de espada qualquer um que ficasse em seu caminho, com uma mensagem clara: Convertam-se ou virem carne de hambúrguer. Se bem que ainda não existia hambúrguer, mas vocês entenderam.
É irônico pensar que Maomé, um humilde condutor de camelos analfabeto fosse capaz de tal levante. Há muitas explicações para isso, mas não deitarei mais linhas a respeito por simples economia de espaço e para não desviar (mais do que já está) do assunto. Mas é importante saber que sob as palavras iniciais de cada sura do Alcorão ergueu-se o maior movimento intelectual e científico da época, e que será explicado no decorrer do texto. Assim, antes de cada sura vem escrito a citação que qualquer muçulmano sabe de cor: Bismillahir Rahmanir Rahim (Em Nome de Deus, O Clemente, O Misericordioso!). Porquanto, toda e qualquer palavra do Al-Quram é considerada sagrada, as palavras do próprio Deus, pois Alá é único e imutável; não há nenhum outro deus senão Alá e Mohammed SAS é seu profeta. Muçulmanos costumam escrever SAS (ou SAAS) após o nome de Maomé, pois é a sigla de Salla Allahu Alahi wa Sallam (Que Deus o abençoe e lhe dê paz). No caso de outros profetas (aqueles que trazem a verdade de Alá) coloca-se AS (Alaihi Salam – Que a paz esteja com ele). Entre outros profetas estão Adão, Noé, Abraão (patriarca dos islâmicos, já que foi pai de Ismael, segundo o mito) e até mesmo Jesus (que pros muçulmanos foi apenas homem comum).
Ano a ano, década a década, enquanto o Império Bizantino caía na degradação e a Europa era terra de ninguém, o Islã florescia.
Enquanto a medicina na Europa praticamente inexistia, quando o analfabetismo era praticamente 100%, a expectativa de vida era de 30 anos e as mulheres morriam lá pelos 20 anos, principalmente por causa de complicações no parto, o mundo islâmico começava a expansão dos seus domínios. O mundo islâmico ia desde a Ásia Central e ia até a Península Ibérica, dominando todo o Oriente Médio, Norte da África e parte da Europa.
Em 638, o califa Umar Ibn Al Khattab entrou em Jerusalém; judeus e cristãos foram recebidos com respeito e havia uma imensa tolerância religiosa e cultural. A sede do império ficava em Bagdad, no atual Iraque, berço da civilização, onde outrora fora parte da gloriosa Babilônia.
Mas então os problemas começaram. Problemas de logística, pois administrar um vasto império em franca expansão não era fácil, e ainda não o é. Não havia um perfeito entendimento entre as pessoas, já que havia muitos lugares, muitos povos, muitas culturas e idiomas diferentes. Entre 688 e 691 da Era Comum, o décimo califa Abdul Malik lbn Marwan, da dinastia Omíada, construiu a Cúpula da Rocha. Sendo um homem pragmático, ele ordenou que a língua oficial de seu reinado fosse o árabe, de forma que as ordens chegassem a todos os lugares, sem que houvesse problemas de interpretação de texto. Instituiu que as pessoas soubessem ler e escrever, não tanto por causa do amor às letras, mas por fundamentação religiosa (todos precisam conhecer as Palavras de Alá; para tanto, precisam ler o que está escrito ali) e política, afinal, desde as épocas mais remotas, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Começou assim um grande movimento de alfabetização. A alfabetização era compulsória. Você TINHA que saber ler! Obviamente, judeus, cristãos ou veneradores de outra religião estavam isentos disso, mas se todo mundo começava a falar e escrever em árabe, como fazer então para se comunicar? E o comércio, que sempre foi a mola-mestra das sociedades? Foi uma tacada de mestre!
Ainda com base no Alcorão, começou um movimento cultural no Império Islâmico. Enquanto outras religiões baseavam-se unicamente no que vinha escrito em seus livros religiosos, o Alcorão estimulava e ORDENAVA que se buscasse o conhecimento onde quer que o encontrassem. Enquanto o Livro de Reis se contentava em dizer qualquer bobagem matemática, onde o valor de pi era deduzido como apenas 3, os árabes se tornaram mestres nas ciências dos números, só se comparando aos chineses e aos hindus. Enquanto os evangelhos sugeriam que sintomas de esquizofrenia deveriam ser tratados com desencapetamentos, os médicos islâmicos começaram a entender melhor como o corpo humano funcionava e até faziam cirurgias.
Só para vocês terem uma ideia, podemos citar o caso de Galeno. Clavdivs Galenvs, também conhecido como Galeno, era um médico grego nascido em Pérgamo em 131 E.C. Sua especialidade eram os gladiadores. Considerando que gladiadores custavam e forneciam dinheiro, através das porradarias nos circos romanos, os donos não queriam que suas “mercadorias” se perdessem. Assim, contratavam excelentes médicos para remendar os lutadores (que normalmente não tinham vida muito longa, de um jeito ou de outro). Galeno ficou famoso porque foi o médico que menos perdeu pacientes durante toda a sua carreira, em comparação aos seus contemporâneos, evidentemente.
Galeno era muito curioso e queria saber como o corpo humano funcionava e só havia um modo de saber: dissecção.
A legislação na época determinava que corpos de pessoas não podiam ser violados. Ainda hoje é assim, pois nossas leis se baseiam nas leis romanas; por isso, para podermos fazer uma exumação de um cadáver, é preciso autorização judicial. Galeno não tinha permissão para ficar fuxicando nos corpos das pessoas, então ele usou outro caminho: dissecava macacos, porcos e cães. Isso o levou a escrever muitas besteiras. Ele achava que o fígado produzia todo o sangue do corpo, o qual saía dele e era distribuído; além disso, acreditava que o sangue continha espíritos. A medicina de Galeno ainda estava repleta de crendices e ideias influenciadas pela sua religião pagã. As ideias (pseudo)científicas de um homem que viveu na Roma do século II tornaram-se uma doutrina médica universalmente aceita até meados do século XVI. 1500 anos separam Galeno do médico belga Andreas Vesalivs, também chamado Vesálio, que foi o primeiro europeu a contradizer as “verdades absolutas” de Cláudio Galeno. Enquanto Galeno afirmava que o fêmur humano era curvo (porque tinha visto em cães), Vesálio deu um “dane-se” pro status quo e realizou autópsias em pessoas, verificando que o nosso fêmur não era curvo, mas reto. Caso tivessem lido as obras árabes, saberiam disso com maior antecedência.
Voltando à administração do reino islâmico, o processo governamental estava ficando cada vez mais complicado, e para o desenvolvimento de uma nação é preciso uma coisa: conhecimento. Saber é conhecer, conhecer é controlar. Dessa forma, no século IX, teve início o reinado do califa Abu Já’far Abdullah al-Ma’mun ibn Harun, da dinastia Abássida, mais conhecido como Al-Mamun. Ele teve o mesmo ímpeto que Alexandre da Macedônia quando fundou Alexandria, no Egito, seguido por Ptolomeu I Soter: O Califa ordenou que emissários fossem aos quatro cantos do mundo e trouxessem o maior tesouro da humanidade: Livros. Não importava quais, não importava de quem, não importava o idioma. Tragam os livros! Sabendo que a busca pelo saber nem sempre é estímulo suficiente, o Califa ofereceu a cada pessoa que trouxesse um livro que ele não dispunha seu peso em ouro. Como nos dias de hoje, bajular Chefes de Estado era garantia de ascender na corte; possuir a proteção de um califa era algo muito legal naquele tempo, onde as pessoas não eram tão amiguinhas assim. O mundo mudou pouco.
Com o tempo, ficou claro um problema sério: o idioma. Havia textos em grego, siríaco, copta, chinês, latim, rúnico, hindu etc. Algo precisava ser feito para dar ordem naquela algaravia de textos. Então, deu-se início um projeto ambicioso: traduzir todos os textos da biblioteca do califado e todos os demais que ainda pudessem ser encontrados. Chefiados por Abu’l-Faraj Muhammad bin Ishaq al-Warraq, conhecido como Ibn al-Nadim, começou o que historiadores denominam Movimento de Tradução. Todo o saber da época seria traduzido para o árabe, de modo que estivesse disponível a todos que quisessem lê-los (lembrando que o analfabetismo praticamente foi erradicado).
Se hoje temos os escritos de Platão, Epicuro, Aristóteles, Cláudio Ptolomeu, Sêneca, Cícero, Sófocles, Júlio César etc., é devido aos árabes. Com alguns escritos não teve jeito! Perderam-se nas brumas do tempo, entre traças, cupins e turbas ensandecidas queimando livros considerados heréticos. Os árabes resgataram muito da sabedoria e cultura dos antigos; mesmo que não tenhamos as obras completas de todos eles, você jamais saberia da Ilíada e a Odisséia se não fosse pelas ordens de Al-Mamun. Mas os árabes não se contentaram com a sabedoria dos antigos. Eles tinham curiosidade, queriam experimentar, queriam testar, queriam comprovar tudo o que estava ali. Eles não aceitavam o peso da autoridade como fato. Só comprovações. Assim, deu-se o início das investigações científicas.
Debates eram amplamente estimulados. Para isso, foi criada a Bait al-Hikma, a Casa da Sabedoria. Nos moldes do Fórum Romano, lá você poderia discutir qualquer tema, desde que fosse de forma respeitosa e, para evitar problemas linguísticos, tinha que ser em árabe, obviamente. Na época, ainda não havia trolls circulando. Se havia, eles provavelmente foram expulsos e/ou decapitados (espero que os dois, coisa que eu gostaria de fazer com alguns que aparecem aqui).
Na Casa da Sabedoria, o conhecimento era transmitido livremente e o saber era absorvido por todos, onde um complementava as ideias/descobertas de outro, num clima sem hostilidades, coisa que está se tornando raro nos dias de hoje.
Temos que dar uma parada para darmos completa atenção ao maior presente que os árabes deram ao mundo: a Matemática.
O MUNDO ISLÂMICO DOS NÚMEROS
Abu Abd Allah Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, também conhecido como Al-Karismi, nasceu na Pérsia, atual Irã, em cerca de 780 E.C. Morreu com 70 anos, em 850 E.C. Suas contribuições para a matemática não foram apenas contribuições. Ao meu modo de ver, ele construiu a Matemática. A começar pelos algarismos. Notem: algarismo provém do seu nome latinizado: Algaritsmi.
Persas, egípcios e babilônios tinham uma excelente e bem fundamentada base matemática. Os gregos não eram bons com a aritmética, e sim com a geometria, pois possuíam um péssimo sistema numérico. A bem da verdade, eles sequer tinham um sistema numérico, apenas atribuíam valores para as letras do alfabeto. Número, como conhecemos, era coisa que não existia para a civilização helênica. O mesmo acontecia com os romanos. Seu sistema de numerais era horrível, um verdadeiro pesadelo para se fazer as quatro operações.
Imaginem somar DCXIX (609) com XLIII (43). O que Al-Karismi fez a esse respeito marcou toda a matemática. De princípio, ele usou uma coisa que os hindus e os chineses conheciam e fez milagres nas contas: o número zero. Com isso, Al-Karismi fez uma revolução matemática! Ele intensificou uma coisa que já existia na antiga Babilônia: a numeração posicional.
De início, vamos (re)ver alguns conceitos matemáticos. Para princípio de conversa, temos que deixar uma coisa bem clara: NÚMEROS NÃO EXISTEM!
SILÊNCIO NO AUDITÓRIO
Isso mesmo que vocês leram! Números, simplesmente, não existem no mundo real. O que temos é a expressão de quantidades. Antes que me xinguem e matemáticos apareçam aqui com foices, tochas e machados, vamos ilustrar isso com o seguinte enunciado:
Você possui 64 limões. Compra mais 15 bananas. Em seguida compra 36 laranjas e, para finalizar, 29 abacates. Quantas frutas você possui no total?
Qualquer criança de ensino fundamental consegue fazer esta conta. Para isso, é preciso armar a conta:
Só que eu posso dizer que 144 não é 144 e sim 12 dúzias de frutas (1 dúzia = 12 unidades). Também posso falar que se trata de apenas 1 grosa de frutas (1 grosa = 12 dúzias = 144). Viram? Eu expresso a mesma quantidade por diversos números diferentes. Agora, vamos a um detalhe nos algarismos (número não é a mesma coisa que algarismo).
64. O que ele nos diz? Eu poderia dizer 6 dezenas e 4 unidades, ou 6d4u. A dezena é um número que possui um valor numérico dez vezes maior que seu correspondente unitário (60 = 10 x 6). Assim, aquele “6” ali não é seis e sim sessenta. Parece simples, mas nem sempre as pessoas estão ligadas nisso. Por exemplo. Tive uma aluna que dividiu 42 por 4 e achou 1,5.
– Hã? Como assim?
– Pô, André! Olha só. 4 divido por 4 = 1. Certo? 2 não é divisível por 4, logo coloco uma vírgula e pronto: 2 dividido por 4 é igual a 0,5. Os dois valores juntos dão 1,5.
O raciocínio dela seria primoroso, desde que o 4 fosse 4, só que não era. Eu tentei explicar que o “4” do 42 não era simplesmente 4 e sim 40, pois ele estava uma posição à frente. Ela não entendeu. Expliquei de novo. Ela olhava pra mim e não entendia. Eu fiz a conta na calculadora e ela se recusou a aceitar o valor, pois 4 dividido por 4 é igual a 1. E agora, Fermat?
O zero nos auxilia nisso. Quando eu escrevo 40, eu digo que não há nenhuma unidade, por isso, coloco um círculo vazio, uma indicação que ali não tem nada e o valor numérico 4 corresponde à casa (ou posição) das dezenas. Esta foi a maravilha que Al-Karismi nos trouxe. E não só isso! Ele nos brindou com o maior e melhor tratado matemático daquela época. O Kitab Al Mukhtassar Fi Hissab Al Jabr Wal Mukabala, mais conhecido como Al-Jabr. Isso lhe soa familiar? Não? Deveria. É desse nome que deriva a palavra “álgebra”, a arte e a técnica de fazer contas sem precisarmos de imediato um valor numérico. Sem a álgebra, não teríamos as fórmulas matemáticas, não teríamos a Física, não teríamos as equações químicas e nem poderíamos deduzir métodos para produzir compostos. Quando antes se fazia no “olhômetro” ou com contas muito complicadas, com a álgebra, o mundo ficou mais fácil. Mas não ficou só nisso.
Al-Karismi sabia que os valores numéricos eram irrelevantes e que poderiam ser expressos de diferentes formas. Com as fórmulas matemáticas, ele deduziu métodos para a solução de problemas de forma genérica. Um babilônio diria: pegue a metade de 20, que é 10, multiplique por si mesmo, dando 100, e subtraia pelo valor inicial, que é 10, dando 90. Em seguida, nosso amigo babilônio diria:
pegue a metade de 30, que é 15, multiplique por si mesmo, dando 225, e subtraia pelo valor inicial, que é 15, dando 210. Para Al-Karismi isso era ridículo, pois estava repetindo a mesma coisa sempre. Al-Karismi diz: pegue a metade de um número – qualquer um, não importa – multiplique por si mesmo e subtraia pelo valor inicial. Você terá o valor que procura. Isso, senhoras e senhores, é a base dessa maquininha que você tem à sua frente. Pois nenhum computador existiria sem programação e nenhuma programação existiria sem um algoritmo. Algoritmo, nome inventado por Al-Karismi, cuja origem etimológica é a mesma de algarismo. Melhorando ainda mais isso, ele descreve como simplificar ainda mais isso: x² – x
Óbvio que a notação de Al-Karismi não era assim, posto que ele usava alfabeto árabe, mas é o mesmo raciocínio, o mesmo processo, o mesmo algoritmo! Lembro-me quando, nas aulas de ICC (Introdução à Ciência da Computação) na faculdade, o professor pediu que construíssemos um algoritmo completo de um dia de trabalho. Desde o momento que abríamos os olhos até a hora que fôssemos dormir.
Quantas coisas! Quantos detalhes! Seria impossível usar o método babilônio. Quer dizer, não era impossível, já que babilônios e egípcios possuíam uma matemática avançada, mas Al-Karismi avançou ainda mais este conhecimento, simplificando o método de fazer as contas.
Relembrando: Isso no século IX, quando a Europa estava um pandemônio. Dali a mais ou menos 200 anos, o papa Urbano II resolveria invadir a Fortaleza de Niceia na mão grande com a Cruzada dos Mendigos, em 1096, devidamente escorraçada dali pelo sultão turco Kilij Arslan. Entre 1096 e 1099, ocorreu a Primeira Cruzada. Depois de 3 anos se estranhando, com os cristãos ganhando e perdendo frente, homens e algumas batalhas, os muçulmanos conseguiram esmagar os exércitos dos lombardos e dos francos em Mersivan. Ainda pelos anos a se seguir, outras Cruzadas aconteceram, mas isso não é importante para nós neste momento.
O mais importante é saber da influência islâmica transcendeu a pesquisa matemática, direcionando-se para a pesquisa e estudo dos corpos celestes, procurando entender como a Natureza funciona.
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SOB O CÉU QUE NOS PROTEGE
Seres humanos sempre se extasiaram com o firmamento. Estrelas, o Sol, a Lua, fenômenos meteorológicos, estrelas cadentes, cometas, etc. Algumas estrelas pareciam mover-se com o passar dos dias, enquanto outras estrelas apareciam sempre nos mesmos lugares. Para as estrelas que se moviam, deram o nome de “planetas”, que significa “errante”.
Aristarco de Samos nasceu em… Samos, uma ilha localizada no Mar Egeu, em 310 A.E.C. e morreu em 230 A.E.C. Ele foi um dos primeiros a defender que a Terra girava ao redor do Sol e a ideia de Eudóxio, que a Terra estava no centro do Universo, sendo orbitada pela Lua e os demais planetas e o Sol. Abaixo da Lua ficava a esfera sublunar, que é imperfeita e, por isso, nós pobres seres humanos vivemos aqui. Acima da órbita da Lua, temos a esfera superlunar, perfeita e imutável. O Sol, os planetas e os Deuses estavam lá. As obras de Aristarco hoje estão perdidas, só sabemos dele por relatos de terceiros.
Muito mais tarde, um certo astrônomo chamado Cláudio Ptolomeu (o nome composto será usado para diferenciar dos reis ptolomaicos) compilou todo o conhecimento cosmológico da época numa obra monumental chamada Almagesto, que significa “O Grande Livro”. Nele, Cláudio Ptolomeu até mesmo cita Aristarco, mas disse que ele estava errado e que, sim, existe uma esfera superlunar e uma sublunar.
Fim da linha, Eudóxio estava certo. Mas havia alguns problemas: as órbitas dos planetas não se encaixavam com o modelo geocêntrico.
Algumas vezes, parecia que o planeta tinha um movimento retrógrado, isto é, ele “voltava” pelo meio do caminho para seguir adiante.
Dessa forma, Cláudio Ptolomeu fez uma salada matemática tentando provar que sim, era possível, com círculos, epiciclos e deferentes, preferindo a complicação ao invés da simplificação. Esquematicamente, podemos ver o seguinte
Os planetas não giravam, portanto, ao redor da Terra. Eles seguiam uma órbita e esta órbita girava ao redor da Terra. A órbita seguida pelo planeta era o chamado “epiciclo” e a órbita circular seguida pelo epiciclo é chamada de “deferente”. Sim, eu sei que isso é completamente doido, se compararmos com o esquema elegante de Aristarco. Só que não é só isso. O modelo adotado por Cláudio Ptolomeu explicava a mudança de tamanho aparente dos astros e do movimento retrógrado de alguns deles, mas tinha ainda outros problemas; por exemplo, ele não explicava porque alguns desses astros pareciam aumentar ou diminuir a sua velocidade aparente.
Então, Cláudio Ptolomeu surtou e mudou seu esquema, dizendo que a Terra não estava bem no centro, mas que girava em torno desse centro, assim como todos os demais planetas, estrelas, a Lua e o Sol. Este centro é chamado de “equante”. Se Cláudio Ptolomeu queria deixar seu modelo mais louco do que ele era, com certeza ele conseguiu.
Por muito tempo, suas palavras foram tidas como a verdade suprema, só que isso não existe em termos de Ciência. Até que um cientista chamado Ibn Al-Haythan leu os trabalhos de Cláudio Ptolomeu, e não gostou nada do que viu.
Abu Ali al-Hasan ibn al-Haytham, conhecido como Al-Haytham (ou ainda Al-Hazen), nasceu em Basra, no atual Iraque, em cerca de 965 e faleceu em 1040 da Era Comum. Dizer que ele era um cientista parece ser extremamente simplista perto do que ele era. Pode-se dizer que ele é o primeiro físico por criar uma metodologia científica acurada, apesar do bairrismo ocidental conferir a Galileu tal título. Não que Galileu deixe de ser o gênio que era, mas Ibn Al-Haythan investigou meandros que nem mesmo Galileu aventurou-se.
Al-Haythan era engenheiro, matemático, anatomista, astrônomo e médico. Ele pesquisou o olho humano, as propriedades ópticas da luz, oftalmologia, teologia, psicologia e era comentarista das obras de Aristóteles e Euclides, além do próprio Cláudio Ptolomeu. Além disso, era esperto suficiente para sair de enrascadas, como o que aconteceu com o governante do Egito na época, o califa Al-Hakim.
Conta-se que, como todo bom governante, Al-Hakim tinha ideias “magníficas” e a tendência a obras faraônicas, o que vem bem ao caso dado o local que era, se me permitem o trocadilho. Dessa forma, o califa teve a “brilhante” ideia de criar um desvio no rio Nilo, de modo que fossem controladas as suas cheias e vazantes. Al-Haythan analisou o problema e viu que aquilo era uma enorme loucura, dado o tamanho e volume d’água do Nilo. Al-Hakim exigiu que a obra fosse feita ou Al-Haythan teria um destino bem feio. Como todo cientista com um mínimo de discernimento, Al-Haythan resolveu o problema de maneira bem simples: fingiu ter ficado louco. O califa ainda desconfiou daquilo e ordenou que o grande Al-Haythan ficasse em prisão domiciliar.
Durante os longos anos fingindo estar totalmente pirado, Al-Haythan devotou-se à pesquisa da óptica. Descobriu as propriedades da luz e verificou que ela sempre se propaga em linha reta, usando unicamente o expediente de olhar uma vela por um cano. Simples, eficaz, mas ninguém tinha tido esta idéia ainda. Além disso, estudou as propriedades da câmara escura e se ele tivesse impregnado um pedaço de papel com sais de prata e colocado dentro da câmara, teria inventado a fotografia já no século XI. Al-Haythan criticou severamente os postulados de Aristóteles, que dizia que enxergamos ao emitir “raios” por nossos olhos que iluminariam um determinado objeto, liberando sua essência, a qual é captada de volta por nós. Ou seja, Aristóteles criou o que seria o precursor do Scott Summers. Ao dissecar olhos, Al-Haythan descobriu que nossos olhos são como as câmaras escuras e funcionam da mesma forma.
A farsa de Al-Haythan chegou ao fim com a morte do califa Al-Hakim, quando finalmente Al-Haythan ficou “bom” da sua loucura. Então, era hora de descer o pau em Cláudio Ptolomeu.
Al-Haythan demonstrou que Cláudio Ptolomeu trapaceara ao dar duas explicações simultâneas para o movimento dos planetas, sendo que uma contradizia a outra. Em uma, a Terra estava paradinha no centro do Universo; no outro, ela não estava, e os planetas giravam em torno deste ponto, o equante. Isso era um disparate! Total absurdo! Ou a Terra está no centro, dizia Al-Haythan, ou não está. O pior é que Cláudio Ptolomeu SABIA que era absurdo, condenou Al-Haythan! Isso, ao meu modo de ver (e acho que Al-Haythan concordaria comigo) mostra uma grande falta de honestidade – para não dizer safadeza – de Cláudio Ptolomeu. Ele tinha a teoria de Aristarco, mas o ego dele venceu e ele QUERIA que o modelo eudoxiano fosse verdadeiro, mesmo que alterando severamente tal modelo.
Outros cientistas árabes debruçaram-se sobre o problema dos corpos celestes e produziram verdadeiras jóias. Jóias que mais tarde seriam usadas para revolucionar toda a Astronomia.
HÁ MUITAS COISAS ENTRE O CÉU E A TERRA
Os árabes, graças a Al-Karismi, já dispunham de muitas ferramentas. A álgebra estava criada, a geometria e a trigonometria não eram mais nenhum segredo. Um dos maiores contribuidores para o desenvolvimento da matemática foi Abu Abdallah Muhammad ibn Jabir ibn Sinan ar-Raqqi al-Harrani as-Sabi al-Batani. Al-Batani, para encurtar. Suas tabelas astronômicas, reunidas num livro de 57 capítulos recebeu o nome de al-Zij al-Sabi. Al-Batani nasceu em 858 e faleceu em 929 da Era Comum. Foi uma referência para vários matemáticos, astrônomos e sábios em geral. Desde Regiomontanus até Johannes Kepler, vários cientistas beberam da fonte de Al Batani e até mesmo um certo cônego polonês chamado Nicolau Copérnico mencionou seu trabalho em seu livro mais famoso: De revolvtionibvs orbivm coelestivm (“Da revolução das esferas celestes”), o qual Copérnico pediu para que fosse publicado depois de sua morte, ocorrida no ano de 1543. Só que o que a História omite-se em dizer é que o livro máximo de Copérnico teve outras fontes. E essas fontes foram muito mais caudalosas. Alguns alegam que foi um verdadeiro plágio, mesmo.
Não se pode chamar Muhammad ibn Muhammad ibn Hasan Tusi, mais conhecido como Al-Tusi, simplesmente de “matemático”. Ele foi muito, muito, MUITO mais que isso. Ele era matemático, filósofo (no tempo que filosofia não era ficar citando um monte de gente ao invés de pensar por si próprio), cientista natural, engenheiro, diplomata, doutor em leis, teólogo, médico, astrônomo entre outras coisas que provavelmente eu esqueci. Ah, sim, ele também era biólogo, alquimista, físico e ainda teve a capacidade de passar a perna em um líder mongol chamado Hulagu Khan sem perder a cabeça (no sentido literal). Eu queria um autógrafo dele (do Al-Tusi, não do Hulagu Khan).
Al-Tusi leu as obras de Al-Haythan e resolveu criar um modelo para explicar o movimento dos corpos celestes. Dessa forma, Al-Tusi desenvolveu o que seria chamado na década de 1960 de “Par de Tusi”. Trata-se de dois discos coplanares, onde o círculo interno gira duas vezes. Um em torno do seu próprio eixo e outra quando o disco interno “caminha” pelo círculo externo. Vocês conhecem corpos celestes que possuem este movimento, não? Mas só um corpo que não está no centro do Universo seria capaz de tal movimento. Vejam a animação abaixo, onde você poderá interagir com a freqüência do movimento e o raio do disco interno.
Os diagramas e desenhos esquemáticos de Al-Tusi são muito similares aos que constam no livro de Copérnico. Seria coincidência? Não parece. Eles não são parecidos, são iguais! Al-Tusi teria copiado o trabalho de Copérnico? Impossível, já que o bom árabe nascera em 1201 e morrera em 1274. A imagem ao lado coloca lado-a-lado o diagrama contido no manuscrito de Al-Tusi e o diagrama constante no livro de Copérnico. Consegue perceber a enorme semelhança?
Em 1255 aconteceu uma coisa que Al-Tusi não esperava e isso iria alavancar suas pesquisas, graças à sua enorme presença de espírito. Liderados por Hulagu Khan, neto de Temujin, um exército mongol chegou ao sopé do monte Alamut, onde ficava um centro de estudo de Al-Tusi. Temujin, caso o nome não lhe seja familiar, era o verdadeiro nome de Chinggis Khaan (que no Ocidente ficou conhecido como Gengis Khan), o príncipe dos conquistadores.
Al-Tusi explorou uma coisa comum a todos os idiotas iletrados: sua superstição. Ele ofereceu seus serviços a Hulagu Khan, que não desdenhava destruir tudo o que aparecesse em seu caminho, de forma que usasse seu conhecimento dos astros para fazer previsões astrológicas para o tosco Hulagu, que devia ser tão burro quanto feio, ou tão feio quanto burro. Mas, advertiu Al-Tusi, ele só poderia fazer isso se dispusesse de um lugar onde ele pudesse examinar os astros e interpretar a sorte que eles guardavam secretamente. Assim, em Maragha, Al-Tusi dirigiu a construção que seria o maior centro astronômico daquela época. Creio que só Uraniborg, construído por Tycho Brahe, foi páreo para ele, mas Uraniborg apareceu séculos mais tarde.
No observatório de Maragha, conhecido como Escola Maragha, Al-Tusi reuniu cientistas do mundo inteiro, até mesmo da China! Hoje, não temos muito mais que uma ruína praticamente destruída daquele belo centro, com um braço armilar que tinha 10 metros de diâmetro, o chamado “Quadrante”, através do qual os astrônomos registravam, todas as noites, a posição das estrelas, mediante a graduação em graus, já que o quadrante é, praticamente, um gigantesco transferidor. Kepler nunca precisou de um telescópio para estabelecer suas 3 leis do movimento planetário. Ele usou os dados obtidos por Tycho Brahe em seu quadrante gigantesco, instalado em Uraniborg (por sinal, ele só teve acesso a esses dados depois que Brahe morreu). Abaixo, vemos uma representação de como era o braço armilar do observatório (reconstrução feita pelo documentário A Ciência e o Islã, da BBC):
Mas a pesquisa de Al-Tusi ainda tinha algumas falhas. Ciclos, epiciclos, pares de Tusi etc. Ainda não tinham chegado a uma teoria astronômica que estabelecesse o heliocentrismo. Copérnico citou nominalmente Al-Batani em seus trabalhos, mas é clara a ligação com o trabalho de Al-Tusi; mas não é só isso. Copérnico não só usou os dados precisos de Al-Batani, baseou-se em desenhos e diagramas de Al-Tusi, como fica bem percebido que ele bebeu na fonte de mais um astrônomo islâmico: Al-Shatir.
Ala Al-Din Abu’l-Hasan Ali Ibn Ibrahim Ibn al-Shatir nasceu em 1304 E.C. Ele se destacou como matemático, engenheiro, astrônomo e o responsável por construir uma relógio de sol de extrema precisão para a mesquita omíada em Damasco, na Síria. Para muçulmanos, é muito importante saber as datas e horas com precisão, devido às intricadas regras para estabelecer os horários das orações. No islamismo, os fiéis precisam rezar pelo menos em 5 horários distintos durante o dia. Com o sistema de Al-Shatir, saber estes horários, mesmo levando em consideração a posição relativa e aparente do sol ao longo do ano, os muezins podiam chamar seus fiéis à oração nas horas certas.
Seu mais importante tratado de astronomia foi o Kitab nihayat al-sul fi tashih al-usul (A busca final pela retificação de princípios), no qual ele drasticamente reforma os modelos ptolomaico do Sol, Lua e planetas, para introduzir o seu próprio modelo (não-ptolomaico), eliminando assim o epiciclo no modelo solar, e deixando de lado todos os excêntricos e epiciclos/equantes no modelo lunar.
Enquanto os modelos anteriores da escola Maragha eram tão precisos como o modelo ptolomaico, o modelo geométrico Ibn al-Shatir foi o primeiro que realmente foi superior ao modelo ptolomaico, em termos de melhor concordância com as observações empíricas. Outra conquista de Ibn al-Shatir foi a rejeição do modelo ptolomaico no empírico, em vez de razões filosóficas. Ao contrário de astrônomos anteriores antes dele, Ibn al-Shatir não estava preocupado com a aderir aos princípios teóricos da cosmologia ou filosofia natural (ou a pseudofísica aristotélica), mas sim para produzir um modelo que era mais consistente com observações empíricas. Seu modelo foi, portanto, em melhor acordo com observações empíricas do que qualquer dos modelos anteriores produzidos antes dele. Sua obra, portanto, marcou uma viragem na astronomia, que pode ser considerado uma “Revolução Científica, antes do Renascimento”.
DA PRÁTICA À TÁTICA
Não foi, contudo, só na matemática que os árabes deixaram sua marca. Vocês já ouviram falar na palavra “alquimia”, muitas vezes a associando com poderes mágicos ou coisas do tipo. Eu, particularmente, a chamo de proto-química, a qual muitos espertinhos usaram ao seu favor para criar um misticismo em torno dela, a fim de ganharem dinheiro à custa dos otários. Também havia aqueles que queriam usar poderes mágicos das substâncias para encontrar o elixir da vida eterna ou transformar todos os metais em ouro. Árabes também possuíam esta fraqueza, mas também tinha espírito científico. O termo “alquimia” é uma palavra árabe. A origem da palavra, segundo alguns historiadores, seria Al Khen, o país negro, numa clara referência aos antigos egípcios, plenos conhecedores de misturas e combinações. Entretanto, outros acham que deriva da palavra chymia, que em grego significa “fundição”, já que durante a pesquisa sobre os metais, muita coisa foi descoberta. Naquela época, aqueles que dominavam as melhores técnicas metalúrgicas possuíam melhor armamento, e isso ficou evidenciado quando as espadas de aço romanas (os gládios) eram muito superiores às espadas de bronze gregas, o resultado dessa qualidade repousa no conhecimento de quem dominou quem. Além disso, ainda temos necessidades administrativas e, para isso, construções e projetos de engenharia eram mais do que necessários.
Um dos maiores nomes árabes da pesquisa química é Abu Musa Jabir ibn Hayyan, mais conhecido pela latinização do seu nome: Geber.
Ele foi responsável pela introdução de muitos nomes comuns a nós, tanto químicos, como pessoas comuns. Muito provavelmente, muitas pessoas desconhecem o termo “álcalis”, mas com certeza já ouviram falar em “alambique”. Geber foi um dos primeiros a refinar a técnica da destilação e da calcinação. Isolou muitas substâncias novas como o ácido sulfúrico, que ele chamava “Óleo de Vitríolo” e do “Ácido Muriático”, cujo nome oficial é o ácido clorídrico, presente em nosso suco gástrico.
Muhammad ibn Zakariya al-Razi (também conhecido como Al-Razi, ou simplesmente Rhazes) nasceu em 865 E.C. e morreu em 925. Com métodos de destilação, ele separou o ácido acético do vinagre e o etanol do vinho, conhecia o tetraborato de sódio, que ele chamou na época de “bórax” (nome pelo qual ainda hoje é conhecido) estudou as propriedades do ácido sulfúrico, diferenciou sarampo de simples catapora entre muitas outras coisas. Al-Razi tornou-se diretor do hospital da cidade de Rey, governada por Mansur ibn Ishaq ibn Ahmad ibn Asad, entre 902 e 908 E.C. O hospital era um verdadeiro centro de medicina e pesquisa, coletando remédios de várias partes do mundo e estudando-as detidamente. Sua vasta obra inclui nada menos que 14 livros sobre medicina. Devo confessar que alguns deles continham várias falhas, mas muitos que estudaram em seus livros extraíram jóias em termos de pesquisa médica, melhorando, ampliando e desenvolvendo cada vez mais a ciência.
O conhecimento árabe sobre os materiais proporcionou algumas maravilhas. Eles aprimoraram a fabricação da pólvora, usando-a como arma de terror e ataque. O livro Al-furusiyyah wa al-manasib al-harbiyya (O livro da Cavalaria e Armas de Guerra) descreve como Najm al-Din Hasan Al-Rammah criou armas de mão semelhantes a morteiros e até mesmo um torpedo de superfície (!!), em 1270 E.C. No entanto, a engenharia militar islâmica é apenas uma sentença no grande texto que escreveram ao longo da História. A engenharia civil superou tudo que os antigos tinham criado até então. Claro, a Pont Du Gard é uma obra monumental erigida pelos romanos, mas os sistemas de bombeamento de água criados por Taqi al-Din também merecem reverência.
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Taqi al-Din Muhammad ibn Ma’ruf al-Shami al-Asadi, vulgarmente conhecido como Taqi al-Din, nasceu em 1526 e morreu em 1585 da Era Comum. Pela época em que ele viveu, ele não conheceu pessoalmente muitas das maravilhas islâmicas de outrora. Não obstante, isso não o impediu de contribuir decisivamente para com várias áreas do conhecimento. Ele estudou profundamente a obra de Al-Jazari e criou máquinas fantásticas, como um sistema de bombeamento de água de seis cilindros, o qual merece uma análise mais detalhada.
Existe uma maquete em Dubai que reproduz este fantástico sistema de bombeamento de água. Mas o que ele tem de tão fantástico? Sabe o seu carro? A semelhança entre o sistema de Taqi al-Din e o interior do motor do seu carro é máxima!
Taqi al-Din alinhou 6 cilindros que são movimentados por uma roda de cames. Uma roda de cames nada mais é que uma roda d’água ligada a um eixo que gira livremente. Este eixo tem várias “cames”, que são uma espécie de “dentes”, que giram mediante o giro do eixo. Estas cames, assim que passam pelos cilindros, fazem com que os pistões dentro dos cilindros se ergam, puxando a água. O eixo continua seu giro, de forma com que as cames soltem os pistões, que caem de volta já que possuem um peso na extremidade superior.
Ao voltar, o pistão empurra a água, que sai por uma abertura lateral, controlada por uma válvula de retenção.
O mais interessante é que as cames NÃO ESTÃO alinhadas, acarretando num fluxo de água ininterrupto, bem semelhante os nossos motores de hoje em dia. Pensem: o pistão se ergue, o cilindro enche-se de combustível, o pistão desce, vedando a entrada de combustível e comprimindo o conteúdo do cilindro, a vela solta uma faísca, a explosão faz com que o pistão suba, puxando mais combustível e assim sucessivamente.
As colunas por onde a água era impulsionada pelas seis bombas se unem num cilindro central, e a água é dirigida até um aqueduto, por onde é distribuída. Como o fluxo de 6 tubos se concentrava num único apenas, a pressão aumentava consideravelmente. Pelos esquemas, em torno de 3 vezes, já que a tubulação final tinha o dobro do diâmetro dos tubos por onde as seis bombas impulsionavam a água. Fantástico, não?
Mas a engenharia islâmica tem um mestre. Seu nome é Abu al-’Iz Ibn Isma’il ibn al-Razaz al-Jazari, mais conhecido como Al-Jazari, nascido nas terras chamadas Al-Jazira, entre o Iraque e a Síria, em 1136 E.C. Não se sabe muito sobre ele, mas seus feitos enchem volumes e mais volumes. Al-Jazari não era apenas um engenheiro, coisa que eu acho que servia como distração para ele, posto que ele era matemático, astrônomo, químico, artesão, escultor, maquetista, engenheiro mecânico e hidráulico, inventor etc.
Sabe-se que ele projetou autômatos, bombas de sucção, rodas d’água, clepsidras (relógios de água), astrolábios etc. Seu livro mais famoso é o Tratado da Teoria e da Prática das Artes Mecânicas, de 1206.
Al-Jazari fez uso intenso de sistemas de engrenagens de modo a automatizar o trabalho e um dos precursores do sistema biela-manivela, cujo sistema é de uma simplicidade enganosa. Basicamente, trabalha com dois sistemas conjugados: um retilíneo e outro circular. A maravilha desse sistema é que ele pode ser empregado de duas formas, que são inversas. Veja a ilustração abaixo:
Como podemos ver, a roda gira, movimentando o eixo que empurra um pistão. O que este pistão fará não é importante, posto que pode ser qualquer coisa: um pistão de compressão para motores de combustão interna, bombas etc. Mas, se o sistema for invertido, com o pistão movimentando a roda, temos o processo pelo qual as rodas das locomotivas se mexem.
Para finalizar, nada é tão fantástico no trabalho de Al-Jazari como o relógio-elefante que ele criou. De forma bem simplista (e completamente tola), poderíamos dizer que o relógio-elefante não passa de uma clepsidra “chique”. Em fato, usa a força da água para marcar o tempo, mas a engenhosidade, precisão e magnificência do aparato é algo que assombra até mesmo o pessoal de hoje. Através de suas descrições minuciosas, engenheiros modernos conseguiram construir uma reprodução desse magnífico relógio e está em exposição no Ibn Battuta Mall, em Dubai.
Desafio vocês, arautos da Tecnologia de Informação, projetar algo tão esplêndido quanto isso (e tão funcional quanto). OITO séculos separam vocês de Al-Jazari, quero ver do que vocês são capazes de fazer, unicamente usando a força da água.
O OCASO DE UM SONHO
No 25º dia do mês santo do ramadã do ano 658 do calendário islâmico (3 de setembro de 1260), guerreiros muçulmanos enfrentaram o exército mongol de Hulagu Khan, na Batalha de Ain Jalut. Por muito pouco, os árabes conseguiram resistir, mas diversas ondas de fanáticos cristãos ainda insistiam nas Cruzadas, matando indiscriminadamente, destruindo casas, bibliotecas, centros de estudos e tudo que representasse conhecimento não-autorizado pela Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana (ou seja, tudo).
Hulagu, apesar de líder mongol, defendia o Cristianismo, pois era filho de uma seguidora dos ensinamentos de Nestório, patriarca de Constantinopla. Vários dos generais mongóis foram recrutados entre os cristãos turcos, que haviam sido aliados ou simpatizantes dos franj, como os cruzados eram conhecidos pelos muçulmanos.
Bagdá, a capital da dinastia árabe abássida, foi conquistada em 1258 e 80 mil pessoas foram brutalmente assassinadas, incluindo mulheres e crianças. As ruas se tornaram rios de sangue. Muito mal Al-Tusi escapou, e assim mesmo porque passou a perna em Hulegu, graças à boçalidade do líder mongol.
Os reis católicos das duas cidades-estado de Castela e Aragão resolveram pôr um fim à presença islâmica no que se tornaria a Espanha. A fanática Isabel de Castela criou o que seria a mais infame arma contra os hereges que não se submetessem ao poder e glória de Jesus, o Salvador de almas impuras, que disse para não ofender ninguém e amar ao próximo. Mas fanáticos não levam isso em consideração. Só as partes que atendem às suas insanidades. Teve início a mais ignominiosa ação abençoada pela ICAR: a Inquisição, responsável por assassinar, pilhar, violentar e destruir todo aquele que fosse julgado culpado. De que, ninguém sabia nem se importava.
O que outrora foi o estopim para o Renascimento, fora reduzido a cinzas. Sábios foram mortos, bibliotecas foram destruídas. Se o pouco que se salvou foi responsável pela revolução do conhecimento no século XVI, imaginem se tudo que os árabes tinham guardado estivesse à nossa disposição; mas é tolice pensar o que poderia ou não ter acontecido. O fato é que todas aquelas jóias perderam-se para sempre.
Thomas Woods diz que foi a Igreja Católica que construiu a civilização. Ou ele é burro ou um fanático religioso, pois a história contesta isso e há centenas, milhares, de documentos provando o contrário. Hipátia e a Biblioteca de Alexandria são bons exemplos de como os cristãos respeitavam as crenças e a cultura.
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A ICAR, pelo contrário, foi a destruidora de várias civilizações, destruidora da cultura e inimiga do conhecimento ao longo de vários séculos. As muitas universidades fundadas pela ICAR não visavam o desenvolvimento científico e sim para fundamentar o chamado trivium (gramática, lógica e retórica) em vez do quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). E mesmo que ensinasse mais do segundo, não conseguiram reproduzir as magníficas construções que os árabes já dispunham 300 anos antes.
A alegação que nossos direitos fundamentais foram trazidos e baseados no direito canônico é uma piada, posto que Roma tinha um sistema jurídico muito mais eficiente e justo. No Brasil, nosso sistema baseia-se no Direito Romano, e não foi a Roma dos Papas com seu fisiologismo e corporativismo. Enquanto no mundo islâmico qualquer um podia abraçar a fé que quisesse, no mundo católico quem o fizesse iria pra fogueira. Se você rezasse pra Jesus, mas fosse Protestante, iria pra fogueira e o próprio Thomas Morus mandou protestantes serem cozidos em óleo quente. Se você fosse católico e estivesse num reino protestante, também estava ferrado. Este é o sistema jurídico do mundo cristão? Ainda bem que não o copiamos.
Hoje, vemos o fanatismo religioso tomar conta do mundo árabe, relegando-os à barbárie de sua própria Idade das Trevas. Fico pensando quando se dará o seu Renascimento, mas eles teriam que se basear em sabedorias antigas. Quem sabe, sua própria sabedoria há muito esquecida.