Peter Kropotkin (in Lei e autoridade, 1886)

A um exame atento, as milhares
de leis que existem para regular a humanidade
parecem estar divididas em três categorias
principais: proteção da propriedade, proteção dos
indivíduos, proteção do governo. E analisando cada
uma destas categorias, chegamos a uma única e
inevitável conclusão lógica e necessária: a
inutilidade e perniciosidade das leis.
Os socialistas sabem o que significa proteção da
propriedade. As leis que regulam a propriedade não
foram criadas para garantir, nem ao indivíduo nem à
sociedade o gozo do produto do seu trabalho. Pelo
contrário, elas foram criadas para despojar o
produtor de uma parte daquilo que ele produziu e
para garantir a outras pessoas a posse daquela
porção do produto que foi roubado, ou do produtor em
particular ou da sociedade em geral. Quando, por
exemplo, a lei assegura ao Senhor Fulano de Tal o
direito sobre uma casa, ela não está estabelecendo
seu direito sobre uma casinha que ele mesmo tenha
construído, ou a um prédio erguido com a ajuda de
alguns amigos. Se fosse assim, seus direitos nem
seriam questionados. Mas pelo contrário, a lei está
estabelecendo seus direitos sobre uma casa que não é
fruto do seu trabalho, em primeiro lugar porque ele
a fez construir por outros, aos quais nem sequer
pagou o preço justo pelo trabalho realizado e,
depois, porque a casa representa um valor social que
ele não poderia ter produzido para si. A lei, no
caso, está estabelecendo o seu direito a algo que
pertence a todas as pessoas em geral e a nenhuma em
particular. A mesma casa construída nos confins da
Sibéria não teria o mesmo valor que tem numa cidade
grande e, como sabemos, este valor é o resultado de
cerca de 50 gerações de homens que construíram a
cidade, embelezaram-na, dotando-a de água e gás,
belas avenidas, universidades, teatros, lojas, vias
férreas e estradas que levam a todas as direções.
Assim, ao reconhecer os direitos do Sr. Fulano a uma
determinada casa em Paris, Londres ou Rouen, a lei
está lhe reservando, injustamente, certa porção do
produto do trabalho da humanidade, como um todo. E é
precisamente porque essa apropriação - e todas as
outras formas de propriedade que tenham as mesmas
características - é uma injustiça gritante que são
necessários todo um arsenal de leis e um exército de
soldados, policiais e juízes para mantê-las contra o
bom senso e o sentimento de justiça inerentes à
humanidade.
A metade das nossas leis - o código civil de cada
país - não serve a qualquer outro propósito senão o
de manter esta apropriação, este monopólio em
benefício de determinados indivíduos em detrimento
de toda a humanidade. Três quartos das causas
julgadas pelos tribunais não são nada mais do que
disputas entre monopolistas - dois ladrões lutando
pela posse do produto de seus roubos. E muitas das
nossas leis criminais têm o mesmo objetivo em vista,
tendo sido criadas para manter o trabalhador numa
posição de subordinação em relação ao patrão,
proporcionando a segurança necessária para que a
exploração continue.
Quanto a garantir ao produtor o produto do seu
trabalho, não há qualquer lei que ao menos tente
fazê-lo, já que isso é algo tão simples, tão
natural, de tal modo integrado aos usos e costumes
da humanidade, que o Direito nem sequer cogitou
disso. O banditismo às escancaras, com espada na
mão, não é uma característica da nossa época. Nem
jamais dois trabalhadores chegam a disputar o
produto do seu trabalho. Se têm um desentendimento,
eles o resolvem chamando uma terceira pessoa, sem
que haja necessidade de recorrer à lei. O único ser
capaz de arrancar de outro o produto do seu trabalho
é o proprietário que interfere sempre para ficar com
a parte do leão. Quanto à humanidade em geral, ela
em toda a parte respeita o direito de cada um àquilo
que ele mesmo criou, sem recorrer a qualquer lei
especial.
Como todas as leis sobre propriedade, que enchem
grossos volumes de Códigos de Direito e fazem as
delícias de nossos advogados, não têm qualquer outro
objetivo senão o de proteger a apropriação injusta,
garantir que certos indivíduos se apropriem
indevidamente do trabalho de outros seres humanos,
não há nenhuma razão que justifique a sua
existência. No dia da Revolução, os revolucionários
sociais estão firmemente decididos a acabar com
todas elas. E na verdade, nada mais justo do que
fazer-se uma grande fogueira ao ar livre lançando
nela todas as leis que tratassem dos assim chamados
"direitos de propriedade", todos os títulos de
propriedade, todos os registros e escrituras: em uma
palavra, tudo aquilo que tivesse qualquer ligação
com uma instituição que logo será vista como uma
nódoa da humanidade, tão humilhante quanto a
escravidão ou o servilismo de outras épocas.
As observações que acabamos de fazer a respeito das
leis sobre a propriedade poderiam ser aplicadas
também à segunda categoria de leis: aquelas
destinadas a manter os governos, ou seja, as leis
constitucionais. É outra vez um arsenal de leis,
decretos, disposições, decisões de conselhos e o que
mais houver, criados com o fim de proteger as
diversas formas de governo, seja ele representativo,
delegado ou usurpado, sob cujo tacão a humanidade se
contorce. Sabemos bem - e os anarquistas não cansam
de demonstrá-lo em suas eternas críticas contra as
várias formas de governo - que a missão de todos os
governos, monárquicos, constitucionais ou
republicanos, é proteger e manter através da força,
os privilégios das classes dominantes - a
aristocracia, o clero e os comerciantes. Mais de um
terço de todas as leis que existem - a cada país tem
milhares delas que regulam os impostos, as taxas, a
organização dos departamentos ministeriais e suas
repartições, as Forças Armadas, a Polícia, a Igreja,
etc. - não tem qualquer outro objetivo senão manter,
remendar e desenvolver a máquina administrativa. E
esta máquina, por sua vez, funciona quase que
exclusivamente para proteger os privilégios da
classe dominante. Analise estas leis, observe-as em
ação no dia-a-dia e descobrirá que nenhuma delas
merece ser preservada.
Sobre estas leis não pode haver duas opiniões
diversas - não apenas os anarquistas como os
radicais mais ou menos revolucionários concordam que
a única coisa a fazer com as leis que tratam da
organização dos governos seria arremessá-las ao
fogo.
Resta considerar a terceira categoria, aquela que
diz respeito à proteção dos indivíduos e ao combate
e prevenção do "crime", a mais importante delas, já
que a maior parte dos preconceitos a ela estão
vinculados; porque, se desfruta de uma certa
consideração especial, é em conseqüência da crença
de que este tipo de lei é absolutamente
indispensável à manutenção da segurança em nossas
sociedades.
Essas leis, criadas a partir das práticas mais úteis
às comunidades humanas, foram mais tarde
aproveitadas pelos governantes como um dos meios
para justificar sua própria dominação. A autoridade
dos chefes das tribos, das famílias mais ricas da
cidade e do rei dependia da função de juízes que
desempenham o mesmo nos nossos dias: sempre que é
discutida a necessidade da existência de um governo
é o seu papel como juiz supremo que está sendo posto
em questão. "Se não houvesse governo, os homens
acabariam por destruir-se uns aos outros" - diz o
orador da aldeia. "O principal objetivo de todos os
governos é assegurar a cada acusado o direito de ser
julgado por doze homens honestos", afirmou Burke.
Pois bem, apesar de todos os preconceitos que ainda
existem em torno do tema, já é tempo de que os
anarquistas declarem, em alto e bom som, que esta
categoria de lei é tão inútil e injuriosa quanto as
precedentes.
Em primeiro lugar, quanto aos assim chamados
"crimes" - assaltos contra pessoas - é sabido que
pelo menos 2/3 e freqüentemente 3/4 deles são
instigados pelo desejo de apossar-se da fortuna
alheia. Esta imensa classe de "crimes e delitos"
desaparecerá no dia em que a propriedade privada
deixar de existir. "Mas - dirão alguns - se não
tivermos leis para contê-los e castigos para
detê-los, sempre haverá bandidos para tentar contra
a vida de seus semelhantes, que levarão a mão à faca
em todas as lutas nas quais se envolverem e vingarão
a mais insignificante ofensa com a morte". Este
refrão é repetido sempre que se põe em dúvida o
direito que a sociedade tem de punir os criminosos.
Entretanto, há um fato relacionado a este assunto
que hoje já foi suficientemente provado: a
severidade da pena não diminui a quantidade de
crimes. Enforque e esquarteje os criminosos se
quiser, e o número de crimes continuará igual.
Elimine a pena de morte e não terá um crime a mais,
eles diminuirão até. As estatísticas o provam. Mas
se a colheita for boa, o pão barato e fizer bom
tempo, o número de crimes cairá imediatamente. Isso
também pode ser provado pelas estatísticas. A
quantidade de crimes sempre aumenta ou diminui em
proporção direta aos preços dos alimentos e ao
estado do tempo. Não que a fome seja a causa de
todos os crimes. Não é este o caso. Mas se a
colheita é boa, e os alimentos podem ser comprados a
um preço acessível quando o sol brilha, os homens,
de coração mais leve e menos infelizes que de
costume, não se entregam a paixões sombrias, nem
mergulham a faca no peito de seu semelhante por
motivos banais.
Além do mais, é também sabido que o medo do castigo
nunca impediu que qualquer crime fosse cometido.
Aquele que mata seu vizinho por vingança ou miséria,
não pensa muito nas conseqüências; e houve, até
hoje, bem poucos assassinos que não estivessem
firmemente convencidos de que não deveriam ter sido
acusados.
Não falando de uma sociedade em que o homem receberá
uma educação melhor, em que o desenvolvimento de
todas as suas faculdades e a possibilidade de
exercê-las irá proporcionar-lhe tantas alegrias que
ele não procurará envenená-las com remorsos - mesmo
numa sociedade como a nossa, mesmo com estes tristes
produtos da miséria que hoje vemos entre o povo das
grandes cidades. No dia em que os criminosos não
sofrerem mais qualquer castigo, o número de crimes
não aumentará e é extremamente provável que, pelo
contrário, sofra o decréscimo por criminosos
reincidentes, homens que a prisão embruteceu.
Somos continuamente lembrados dos benefícios que a
lei confere e dos efeitos benéficos do castigo, mas
terão aqueles que nos falam tentado alguma vez fazer
um balanço entre os benefícios atribuídos às leis e
castigos e os efeitos degradantes que esses castigos
tiveram sobre a humanidade? Tente calcular todas as
perversas paixões que os atrozes castigos infligidos
em nossas ruas despertaram na humanidade. O homem é
o animal mais cruel que existe na face da terra. E
quem terá estimulado e desenvolvido esses instintos
cruéis, desconhecidos mesmo entre os macacos, senão
o rei, o juiz e os padres apoiados em leis que
permitiam que a pele fosse arrancada em tiras, o
breu fervente derramado sobre as feridas, os membros
arrancados, os ossos esmagados, os homens
despedaçados para que sua autoridade fosse mantida?
Tente avaliar a torrente de depravação libertada
entre a sociedade humana pela política de delação
encorajada pelos juízes e paga em dinheiro vivo
pelos governos, a pretexto de auxiliar na descoberta
de "crimes". Basta apenas que entre nas prisões e
veja no que se transforma um homem privado da
liberdade e encerrado com outros seres depravados,
mergulhados no vício e na corrupção que escorre das
próprias paredes das nossas prisões. Basta lembrar
que, quanto mais reformas sofrem estas prisões, mais
detestáveis se tornam. Nossas modernas
prisões-modelo são mil vezes mais abomináveis do que
as masmorras da Idade Média. Finalmente, basta
lembrar da corrupção e depravação que existem entre
os homens, alimentadas pela idéia da obediência -
que é a própria essência da lei - da punição; da
autoridade arrogando-se o direito de punir, de
julgar sem considerar nem a nossa consciência, nem a
estima de nossos amigos; da necessidade de que hajam
carrascos, carcereiros e informantes - em uma
palavra, de todos os atributos da lei e da
autoridade. Pense em tudo isto e certamente
concordará conosco quando afirmamos que uma lei que
inflige punições é uma abominação que deveria deixar
de existir.
Povos sem organização política e, portanto, menos
depravados do que nós entenderam perfeitamente que o
homem a quem chamam de "criminoso" é simplesmente um
infeliz; que a solução não é açoitá-lo, acorrentá-lo
ou matá-lo no cadafalso ou na prisão, mas ajudá-lo
como a um irmão, dispensando-lhe um tratamento
baseado na igualdade e nos costumes em vigor entre
os homens honestos. Na próxima revolução, esperamos
que o grito de guerra seja: "Queimem as guilhotinas,
destruam as prisões, expulsem os juízes, os
policiais e os informantes - a raça mais imunda que
existe sobre a face da terra; tratem como a um irmão
o homem que foi levado pela paixão a praticar o mal
contra seu semelhante; e, sobretudo, retirem dos
ignóbeis produtos da ociosidade da classe média a
possibilidade de exibir seus vícios sob cores
atraentes, e estejam certos de que apenas uns poucos
crimes violentos virão perturbar a nossa sociedade".
Os principais incentivadores do crime são a
ociosidade, a lei - leis que regem a propriedade, o
governo, as punições e os delitos - e a autoridade
que toma a seu cargo a criação e aplicação destas
leis.
Chega de leis! Chega de juízes! Liberdade, igualdade
e solidariedade humana são as únicas barreiras
efetivas que podemos opor aos instintos anti-sociais
de alguns seres que vivem entre nós.
Referência da fonte: KROPOTKIN, Peter. A inutilidade
das leis. In: WOODCOCK, George. Os grandes escritos
anarquistas, 2 ed. Tradução de Júlia Tettamanzi e
Betina Becker. Porto Alegre: L & PM Editores, 1981,
pág. 101-6.
Referência a esta cópia: KROPOTKIN, Peter. A
inutilidade das leis. citado por CONTRA OS REIS E AS
RELIGIÕES. [s. n. t.]