Estudo mostra como variação genética altera funcionamento do hipocampo

A persistência da memória, tela de 1931
do catalão Salvador Dalí |
Você se lembra dos detalhes de
uma estória que lhe contaram meia hora atrás? Um
estudo nipo-americano acaba de mostrar que cinco em
cada 100 pessoas encontram certa dificuldade na
tarefa. Em um tour de force científico que combinou
pela primeira vez testes mnemônicos com imageamento
cerebral, genética e biologia celular, a equipe de
Daniel Weinberger ainda explica por quê: trata-se de
uma versão 'alternativa' de um gene. Simples assim.
O gene em questão contém a receita para a produção
do Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro, ou BDNF,
do nome em inglês. O fator, uma espécie de
supervitamina que neurônios produzem para seu
próprio consumo, seria apenas mais um de uma longa
lista de substâncias que contribuem para a
vitalidade e crescimento dos neurônios, se não
fossem dois quês a mais. Primeiro, ao invés de ser
liberado o tempo todo como outros fatores tróficos,
o BDNF é tanto mais liberado pelos neurônios que o
produzem quanto mais ativos eles estiverem. Segundo,
o BDNF comprovadamente facilita o fortalecimento das
conexões entre neurônios (as sinapses) e sobretudo
as do hipocampo, região do cérebro responsável pela
formação de novas memórias. Como elas supostamente
se dão através da modificação das sinapses do
hipocampo, qualquer alteração na entrega de BDNF às
sinapses pode, ao menos em tese, afetar a memória.
Em animais de laboratório o papel do BDNF na
formação da memória já havia sido comprovado: ratos
cujo gene para o fator foi artificialmente eliminado
ficam com dificuldade em aprender a sair de
labirintos, uma das tarefas-padrão para se avaliar o
funcionamento do hipocampo. E no ser humano?
Claro que ninguém vai brincar de cortar fora genes
do DNA de outra pessoa para ver no que dá. Mas isso
nem é preciso. A natureza se encarregou de criar
versões diferentes de cada gene, como marcas de
sabão em pó ou desinfetante no supermercado -- com a
diferença que, no caso do genoma, a versão você leva
de cada gene é resultado de um processo
razoavelmente aleatório ocorrido durante a formação
dos óvulos e espermatozóides de seus pais. No caso
do gene que carrega a "receita" do BDNF, apenas uma
forma variante foi encontrada. A equipe de
Weinberger, então, tratou de testar e comparar a
memória de voluntários que levavam no genoma ou
apenas a versão mais comum ou a variante do gene.
Resultado: nem o QI nem a lembrança de palavras de
uma lista (habilidade que depende mais de outras
regiões do cérebro que do hipocampo) variam conforme
a versão do gene carregada por cada um. A memória
semântica, para fatos, também não diferia entre os
grupos. Mas dos 100 elementos de duas estórias
contadas meia hora antes aos voluntários, uns 60
eram lembrados por aqueles que possuíam a versão
mais comum do gene do BDNF, e apenas 40 eram
recordados por quem só possuía sua variante.
Um exame de ressonância magnética funcional, que
acompanha o consumo de energia por cada região do
cérebro consciente, mostrou que de fato algo não ia
tão bem no hipocampo dos portadores da forma
variante do gene. Em uma tarefa de memória que não
usa o hipocampo e, ao contrário, produz em geral sua
desativação, a ativação dessa estrutura nos
voluntários que possuíam apenas a versão alternativa
do gene fazia o oposto: aumentava.
Se há um problema no hipocampo dessas pessoas, não
parece ser uma questão de integridade dos neurônios:
segundo um exame de espectroscopia que detecta a
concentração de substâncias químicas específicas dos
neurônios, a abundância de neurônios e sinapses
parece perfeitamente normal. A diferença deveria
estar em algum efeito da versão alternativa do BDNF
sobre neurônios e sinapses de outro modo normais. E,
aliás, como seria esse outro BDNF?
Exatamente igual ao produzido segundo a receita do
gene presente na maioria das pessoas, como mostrou a
análise de neurônios do hipocampo do rato forçados a
fabricar o BDNF humano em cada uma das duas versões.
O BDNF secretado em uns e outros é rigorosamente o
mesmo. A diferença está em um pedacinho removido do
fator antes de ele poder ser usado, pedacinho que,
por sinal, é usado pelo neurônio para direcionar o
BDNF corretamente às sinapses. Na forma variante, o
sinal direcionador não funciona. Resultado: os
neurônios produzem BDNF, sim -- mas têm dificuldade
em distribui-lo até as sinapses mais distantes e,
assim, liberam quantidades apenas mínimas de um BDNF
perfeitamente normal quando são ativados.
Dados os efeitos conhecidos do BDNF no
fortalecimento das sinapses conforme elas são
usadas, é de se imaginar que o processo não
acontecerá tão facilmente no hipocampo dos
portadores da versão alternativa do gene. Talvez
venha daí a maior dificuldade dessas pessoas em
lembrar todos os detalhes da estória que acabaram de
ouvir.
O que fazer? Os efeitos, diz Weinberger, são
modestos; nada que deixe a memória tão ruim a ponto
de incapacitar a pessoa. Além disso, apenas um tipo
de memória parece ser afetada -- a episódica, que
permite a recordação de eventos. E, ao contrário do
supermercado, reclamar na gerência não adianta. Se
você tem a versão alternativa do gene, ao menos um
de seus pais também tem -- e não dá para trocar por
outra. Por outro lado, dificilmente a memória boa ou
ruim será obra de apenas um gene. O BDNF
provavelmente é apenas o primeiro conhecido com um
papel na estória; outros provavelmente se seguirão,
e quem possui a versão desfavorável de um pode
perfeitamente possuir todas as versões favoráveis
dos outros, por que não?
Mesmo assim, se você acha que pertence aos
"sortudos" 5% da população que possuem somente a
versão alternativa do gene do BDNF e quer fazer algo
a respeito, por enquanto resta apenas reconhecer que
sua memória episódica não é lá grandes coisas, e das
duas uma:
você pode prestar mais atenção e se empenhar em
exercitá-la para ver se melhora; ou você pode apelar
para o velho bloquinho de notas...
Fonte:
Egan MF, Kojima M, Callicott JH, Goldberg TE,
Kolachana BS, Bertolino A, Zaitsev E, Gold B,
Goldman D, Dean M, Lu B, Weinberger DR.
The BDNF val66met polymorphism affects
activity-dependent secretion of BDNF and human
memory and hippocampal function. Cell 112,
257-269 (2003).