
Não podemos usar a ciência para testar a existência
de Deus, mas a biologia moderna, descendente direta
de Darwin, cria os remédios que salvarão vidas,
mesmo a de seus descrentes.
Metade dos prêmios Nobel e um terço da produção
científica mundial estão nos Estados Unidos. De lá
veio a liderança para o mapeamento do genoma humano.
Muitos de nós estamos vivos graças aos recentes
avanços na medicina americana. Os computadores já
falam (inglês) e um deles ganha dos melhores
enxadristas.
Vem de longa data a liderança científica e
tecnológica de nosso vizinho e daí seu poder.
Poderia parecer então que lá a ciência está
solidamente estabelecida e os paradigmas do
pensamento científico são inabaláveis. Ledo engano.
A teoria da evolução das espécies tem 140 anos.
Nela, Darwin mostrou que as espécies mudam, vão se
transformando, umas competindo com as outras e
sobrevivendo as mais aptas. Nessa teoria, o homem
descende de primatas e é primo do macaco. É o
alicerce de toda a biologia moderna, cujos êxitos
nos salvam a vida e alimentam uma população para a
qual a Terra pareceria pequena demais. Nenhum
professor titular de biologia de qualquer uma das
cinqüenta melhores universidades americanas admite
explicação alternativa. Hoje, nenhuma das religiões
ocidentais importantes tem pinimba com a teoria da
evolução. Não obstante, em 1925 o Estado americano
do Tennessee, depois da batalha legal de Monkey
Trial, aprovou uma lei que proibia o ensino da
teoria da evolução. Somente em 1968 essa lei foi
revogada. Poderíamos pensar que se trata de um
episódio triste, obscurantista, mas encerrado.
Contudo, pesquisa de opinião recente demonstrou que
47% dos americanos acreditam que Deus criou os
homens tais como são, enquanto 49% aceitam a
evolução como explicação correta. Pesquisa com
alunos de cursos superiores mostrou a falta de bases
científicas de 45% daqueles que duvidam da teoria da
evolução. Pior: alguns Estados vêm aprovando leis
que obrigam a ensinar o "criacionismo científico"
(cuja cientificidade é negada pelos biólogos sérios)
lado a lado com a teoria da evolução. O Kansas
eliminou o assunto do currículo.
Stephen Jay Gould, o conhecido paleontólogo da
Harvard, atribui isso à fragilidade da educação
científica americana, que varia entre a melhor e as
mais catastróficas do mundo. Mas há o outro lado da
questão: a pouca penetração da ciência na sociedade,
mesmo diante das próprias questões científicas.
Metade da população pontifica sem saber do assunto e
sem respeitar a autoridade de quem sabe. Isso mostra
a pouca fé no método científico, que é a grande
ferramenta ou motor do conhecimento.
Um dos grandes avanços de nossa civilização é o
processo metódico e sistemático de fazer progredir o
conhecimento: o teste empírico das teorias. Cada
teoria é confrontada com a realidade, de forma
rigorosa e perfeitamente explicitada, de modo que
qualquer um que faça o mesmo experimento chegue às
mesmas conclusões. A teoria conflita com os
resultados? Então, lata de lixo para ela. Se a
observação não nega a teoria, ela sobrevive, até que
alguém encontre uma massa suficiente de casos em que
a teoria não concorda com a realidade. Assim, a
ciência vai desbastando a ciência boa do mito, do
palpite, da superstição. O que sobra é sólido.
Como a observação não nega as idéias de Darwin (com
os retoques e ajustes esperados), a teoria da
evolução é aceita. De fato, hoje sabemos que o homem
compartilha 98% de seu DNA com o chimpanzé. Então,
qual a autoridade intelectual de quase metade da
população americana para negar uma teoria que
resistiu a 140 anos de ataques por aqueles que sabem
do assunto?
É perigoso ter uma população basbaque, que acredita
em tudo. Mas o extremo oposto não é menos perigoso,
pois isso significa a descrença no engenho mais
possante que temos para verificar se alguma teoria
que descreve a realidade é verdadeira ou falsa. Não
podemos usar a ciência para testar a existência de
Deus ou seus mandamentos. Esses são atos de fé ou
juízos de valor. Mas a biologia moderna, descendente
direta de Darwin, cria os remédios que salvarão
vidas, mesmo a de seus descrentes. É triste
reconhecer, mas, no país mais poderoso do mundo, a
ciência não chegou ao povão.